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As
notícias dessas lutas ocupavam todos os jornais, eram discutidas nas
assembléias legislativas, nas associações científicas e instituições
filantrópicas, todas elas exigindo providências imediatas. O presidente
da República convoca reuniões de ministros para estudar a conveniência
de mandar forças do exército para pôr cobro àqueles conflitos. As
populações das zonas pioneiras exigiam medidas capazes de assegurar a
conclusão de estradas de ferro e de garantir a vida dos sertanejos que
conquistavam novas matas para as plantações de café e dos colonos
estrangeiros a quem haviam sido entregues terras habitadas por tribos
hostis.
Era esta a situação da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil, interrompida algumas léguas adiante da capital de São Paulo pelos indígenas Kaingang, que infundiam o terror numa frente de trezentos quilômetros ao longo daquela ferrovia e na região compreendida entre os rios Tietê, Feio, do Peixe e Paranapanema. A situação era igualmente grave nas matas do sul do rio Doce, tanto no Estado de Minas como no do Espírito Santo. Ali os Botocudos se opunham, de armas na mão, ao devassamento do seu território tribal. A colônia italiana de São Mateus via-se ma iminência de ser abandonada. Nas matas de araucárias dos Estados do Paraná e Santa Catarina, os indígenas Xogleng eram chacinados por bugreiros profissionais, estipendiados por sociedades colonizadoras e pelos cofres públicos, para expulsá-los das terras em que sempre viveram e que haviam sido destinadas a imigrantes alemães e italianos. As legações desses países e a imprensa de suas capitais exigiam providências enérgicas, capazes de garantir a vida dos colonos. O extermínio dos indígenas era não só praticado mas defendido e reclamado como remédio indispensável à segurança dos que “construíam uma civilização no interior do Brasil”. Entretanto, a população citadina, distanciada não só geograficamente mas historicamente das fronteiras de expansão, e desligada dos interesses que atiçavam os chacinadores de indígenas, já não podia aceitar o tratamento tradicional do problema indígena, a ferro e fogo. Abria-se um abismo entre a mentalidade das cidades e a dos sertões. Enquanto para os primeiros, o indígena era o personagem idílico de romances no estilo de José de Alencar ou dos poemas ao gosto de Gonçalves Dias, ou ainda, o ancestral generoso e longínquo, que afastava toda suspeita de negritude, para o sertão, o indígena era a fera indomada que detinha a terra virgem; era o inimigo imediato que o pioneiro precisava imaginar feroz e inumano, a fim de justificar, a seus próprios olhos, a própria ferocidade. O movimento que levaria à criação de um órgão oficial incumbido de tratar do problema começa pelas campanhas da imprensa. A princípio são simples descrições de chacinas e apelos por providências do governo. Aos poucos se avoluma, ganha adeptos dedicados que fundam associações destinadas a defender os indígenas. Por fim, empolga as classes cultas do país; e o indígena, até então esquecido, torna-se o assunto do dia – na imprensa, nas revistas especializadas, nas instituições humanitárias, nas reuniões científicas. No Congresso de Geografia, realizado em 1909, já é a questão mais vivamente debatida e objeto de quatro alentadas teses. Para esta tomada de consciência do problema, contribuíram ponderavelmente as conferências do general Rondon que, de volta de suas expedições, revelava à gente das cidades uma imagem nova do indígena verdadeiro que aguardava a intervenção salvadora do governo. Foi ele quem substituiu a figura de Peri pela de um Nambikuára, aguerrido e altivo, ou pela dos Kepkiriwát, encantados com os instrumentos supercortantes da civilização, ou ainda, dos Umotína, dos Ofaié e tantos outros, levados a extremos de penúria pela perseguição inclemente que lhes moviam, mas, ainda assim, fazendo comoventes esforços para confraternizar com o branco. |
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Contribuiu também para polarizar a opinião pública em torno da questão indígena, a morte, pelos Kaingang, em 1901, de um padre muito relacionado nas camadas mais altas de São Paulo, monsenhor Claro Monteiro, que fora tentar sua pacificação. Paradoxalmente,
um dos pronunciamentos mais decisivos para a fundação do Serviço de
Proteção aos Índios foi um artigo de um cientista de renome, Hermann
von Ihering, diretor do Museu Paulista, defendendo ou justificando o
extermínio dos indígenas hostis. Esta proposição causou a mais violenta revolta em todos os círculos, provocando uma série de contestações que contribuíram largamente para a tomada de posição diante do problema e, sobretudo, para a divulgação dos métodos persuasórios desenvolvidos por Rondon. Todavia, a tese de Von Ihering não era mais que a expressão, em letra de fôrma, de uma atitude secular, profundamente enraizada em todas as zonas onde sobreviviam indígenas hostis ou arredios. Acontece, porém, que o indígena se tornara um dos temas prediletos da literatura nacional mais consumida àquela época. Não aquele indígenas que vivia e morria caçado nas matas, mas o bom selvagem inspirado em Rousseau ou em Chateaubriand. E era a este indígena idílico, personagem de romance ameno, que o leitor de jornal via trucidar no artigo de Von Ihering. A
predileção evidente, de Von Ihering, pelo colono é que o fazia
estranhar a “predileção sentimental do brasileiro, em favor
dos indígenas que são um escolho imenso a transpor”.
(1911: 113.) Por outro lado, esta situação de conflito entre indígenas e colonos enquadrava-se muito bem no esquema conceitual de Von Ihering, seu evolucionismo haeckeliano, da competição vital; diante de uma população mais bem-dotada, os mais fracos devem ceder lugar, por um imperativo das leis naturais, da evolução, do progresso. Nesta ordem de raciocínio, Von Ihering chega a ver ameaçada a própria civilização: “A marcha ascendente de nossa cultura está em perigo, é preciso pôr cobro a esta anormalidade que a ameaça” (1911: 113). [A mesma atitude para com os indígenas tivera, de resto, grande voga na ensaística histórica brasileira do século XIX. Seu principal porta-voz foi Varnhagen, que defendeu o “...emprego da força para civilizar os índios” e aspirava que fossem “...quanto antes submetidos e avassalados” e impedidos por todos os meios de voltar à “...medonha e perigosa liberdade de seus bosques”. (Apud C. A. Moreira Neto, 1967: 179.)] |
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Fonte: Os Índios e a Civilização / Darcy
Ribeiro. - São Paulo: Círculo do Livro S.A. s/data.
Ilustração de Delphim - Terra
à vista; Descobrimento ou Invasão /
Benedito Prezia. - São Paulo: Moderna, 2002
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