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Como esses dois irmãos com a sua gente foram os criadores das plantas e dos animais, e povoaram a Terra com os seus descendentes, tudo neste mundo pertence ou à metade Kanyerú ou à metade Kamé, conhecendo-se a sua descendência já pelos traços físicos, já pelo temperamento, já pela pintura: tudo o que pertence a Kanyerú é manchado, o que pertence a Kamé é riscado. Essas pinturas, o indígena vê tanto na pele dos animais como nas cascas, nas folhas ou nas flores das plantas, e para objetivos mágicos e religiosos cada metade emprega material tirado de preferência de animais e vegetais da mesma pintura. Kanyerú fez cobras, Kamé, onças. Este fez primeiro uma onça e a pintou, depois Kanyerú fez um veado. Kamé disse à onça: "Come o veado, mas não nos coma!" Depois ele fez uma anta, ordenando-lhe que comesse gente e bichos. A anta, porém, não compreendeu a ordem. Kamé repetiu-lhe ainda duas vezes, em vão; depois lhe disse, zangado: "Vai comer folhas de urtiga! Não prestas para nada!" Kanyerú fez cobras e mandou que elas mordessem homens e animais. Queimou um espinho chamado sodn e esfregou a cinza nos dentes da cobra a fim de torná-los venenosos. Kamé quis então fazer um animal muito feroz, e começou a fazer o tamanduá. Eles estavam trabalhando durante a noite, e quando o dia começou a romper, o tamanduá ainda não estava pronto: já tinha unhas enormes, mas a boca ainda estava por fazer. Então Kamé arrancou um cipó e meteu-o como língua na boca do estranho animal, que ficou mal acabado. Quando já estava claro, eles começaram a correr, e logo uma onça pegou um Kanyerú, e Kamé foi mordido por uma cobra. Pararam para tratar o doente, quando o surucuá (Trogon sp.) cantou: Tug! Tug! Tug! Um velho explicou essa cantiga como tu (- carregar) e mandou que carregassem o doente para o lugar do acampamento. Um pequeno gavião cantou: Tokfín! (- amarrar) e o velho mandou amarrar o membro lesado. Um outro passarinho cantou: Ngidn! (- cortar), e eles abriram a ferida com um corte. Outro cantou: Iandyóro! (- espremer) e eles espremeram a ferida. Por fim um outro cantou: Kaimparará! (kaimpára - inchado), e o velho disse: "Isto é; um mau grito! Amanhã o membro estará inchado!" Assim foram tratando o doente até que se restabelecesse. |
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A origem dos nomes de pessoas
Quando,
depois, os dois irmãos com a sua gente começaram sua migração pela
terra, aproveitaram os acontecimentos durante a viagem para impor
nomes aos seus companheiros: encontrando um passarinho vermelho de nome
erégn, Kanyerú achou bom este nome e o deu a seu filho. Quando mataram
um gavião real (hu-mbagn), Kanyerú deu a um dos seus companheiros o
nome de Hu-mbagn-niká - penacho de gavião real. Passando, com sol
quente, por um campo, uma menina Kamé quebrou um galho de uma árvore
chamada soke para usá-lo a jeito de guarda-sol. Quando chegaram ao
acampamento, Kamé chamou a menina Soke-kign. No dia seguinte mataram
uma onça (mi), e Kamé deu a um dos seus companheiros o nome de
Mi-yantkí (- boca de onça), enquanto Kanyerú batizou um outro por
Mi-nindó (- braço de onça). Depois outra vez Kamé chamou uma
mulher de Mi-kané (- olho de onça) etc. O rezador, que sabe de todos
esses episódios pela tradição que ele e os seus colegas guardam, é, por
isso, competente para impor o nome à criança, e, já pelo nome, se
conhece a qual metade o indivíduo pertence.
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As almas de defuntos A
alma do defunto (vaekruprí) penetra no chão, imediatamente ao lado do
cadáver, começando logo a se encaminhar rumo ao Toldo dos Defuntos. O
primeiro pedaço do caminho é nas trevas, mas logo ela sai outra vez ao
claro, onde se encontra com algumas outras almas que lhe oferecem
comida. Se comer, continuará o caminho; se não, voltará à superfície da
terra, entrando novamente no corpo que a alma abandonara. Assim se
explicam os casos em que pessoas aparentemente mortas tornam à vida.
Para lá daquele ponto, começam para a alma as dificuldades e perigos do
caminho: primeiro, encontra uma encruzilhada onde um caminho errado
conduz a um lugar onde uma caba preta, gigantesca (kokfumbágn) espera
as almas para devorá-las. Em outro trilho errado, acha-se armado um
laço que colhe a alma, atirando-a dentro de uma panela com água a
ferver. Finalmente, tem de atravessar um brejo por uma pinguela
estreita e escorregadia. Se escorregar e cair, é devorada por um enorme
caranguejo ou, segundo outros, por um cágado. Além da pinguela, a alma encontra o Toldo dos Defuntos, onde os seus conhecidos finados já a esperam com góyo-kuprí¹ para festas e danças. Nesse Toldo dos Defuntos, tudo é mais ou menos como aqui em cima, na Terra. Algumas coisas, porém, têm lá significado diferente ou oposta: assim, os defuntos tratam umas formigas grandes de "onças"; as minhocas são "peixes"; as aranhas, "cobras" etc. O milho é preto. Naturalmente, as almas também brigam entre si, e quando isto acontece, sempre há entre os vivos algum desastre. Nos cemitérios acham-se muitas vezes vestígios de cacetadas, golpes de terçado e marcas de quedas de corpos impressos no chão, especialmente poucos dias depois do enterro, no lugar que o Pényê² varreu com ramos. Se aparecerem só pegadas, é sinal que logo alguém vai morrer. Bem junto ao cadáver, enquanto este ainda não tiver sido tirado do seu leito de morte, o Pényê encarregado de tratá-lo espalha cinza no chão, alisa-a e marca os lugares da vizinhança: o toldo X, o toldo Y etc. Pouco depois aparecem na cinza, no lugar correspondente, aqueles sinais acima mencionados, e até rastros de cobra, se alguém tiver de ser mordido por um desses répteis. Não é, porém, qualquer um que enxerga essas coisas e sabe explicá-las. O dilúvio Quando
o dilúvio chegou, os indígenas se transformaram em macacos-pregos, e os
negros, em guaribas, o que se pode verificar pela catinga destes, que é
a mesma dos negros. Um homem salvou-se, trepando numa palmeira jerivá.
Estava comendo as frutas, enquanto as pontas dos seus pés pendiam
n'água. Os dourados vieram para apanhar os caroços, mas de repente
morderam também os dedos dos pés do homem. Por isso, o dedo miudinho do
nosso pé é menor que os outros. Quando os indígenas já estavam meio
mortos de fome, apareceu o biguá (Krukrú)³ e disse: "Eu farei uma terra
para vós!" Trouxe uma das mãos cheia de terra que espalhou na
superfície da água, de maneira que formou uma ilha. Depois tornou a
trazer outra mais, e assim trabalhou durante dias. Quando não espalhava
bem a terra, esta formava colinas e montanhas.
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1- Bebida fermentada de milho.
2-
Os Kaingang do Ivaí reconheciam, em ambas as suas metades exogâmicas,
quatro (ou mais?) classes, consideradas de maior ou menor sensibilidade
quanto a influências más, e consequentemente com funções cerimoniais
diversas. A classe dos Pényê era considerada inferior, sendo a
menos sensível a feitiço, impureza e doenças. Aos Pényê cabiam as
funções de mais importância na ocasião de um óbito, pois só eles podiam
lidar sem prejuízo com o cadáver e com a viúva.
3- Phalacrocorax olivacens, Humb., ave passeriforme que vive nos rios e costas marítimas.
Fonte: Os Mitos / Curt Nimuendaju in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional . nº 21 / 1986 - Fundação Nacional Pró-Memória / Secretaria do Patrimônio e Artístico Nacional (SPHAN) Ministério da Cultura
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