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Botocudos
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Botocudos
Mitos coletados por Nimuendaju

Os espíritos Marét
Botocudo
No céu habita uma numerosa geração de espíritos, chamados Tokón pelos homens comuns, para os quais são invisíveis. Certas pessoas eleitas, porém, recebem dos próprios espíritos a faculdade de vê-los e de ter trato com eles. Estas pessoas chamam-nos de raça de espíritos Marét.
Os Marét têm a forma e o tamanho de indígenas comuns, disse-me Hanát; Raulino, porém, era de opinião que fossem uma cabeça mais baixos. Há Marét masculinos e femininos, adultos e crianças. Vivem no céu em riqueza e abundância, pois possuem tudo que os portugueses (neobrasileiros) têm, sem que tivessem tido precisão de trabalhar. Para eles não há doenças nem morte.
Os Marét são, para com os homens, bondosos e caritativos; nunca ficam zangados.  Antigamente, os indígenas não tinham nenhuma necessidade de trabalhar: os Marét davam-lhes tudo de que precisavam. A gente só tinha de se dirigir a um dos seus eleitos com quem tinha trato, e logo ele mandava o que se pedia. Na caçada, não era preciso muito esforço; mandava-se pedir caça aos Marét e eles a mandavam. Por isso os antigos não faziam magia de caça (veja, porém, a lenda "Como Berén matou a onça"). Assim, também, se deixava antigamente aos Marét o trabalho de fazer roçados. Quando muito, a mata era derribada; o trabalhador ia embora e, ao voltar, já encontrava a plantação madura.

Um homem de muitos poderes mágicos fez uma derribada e a queimou. Depois chamou sua mulher e se mudou com ela para um outro lugar. "Não queres plantar tua queimada?", perguntou a mulher. "Não", respondeu "não preciso plantar nada." Foram embora. Alguns meses depois o homem mandou um seu parente, do bando, ver como estava o roçado. "Por que o mandaste ao roçado", objetou a mulher, "se lá não plantaste coisa alguma?!" Quando o enviado chegou ao roçado, achou-o cheio dos mais variados frutos, que cresciam todos de um só pé. O enviado voltou com cinco espigas de milho. Quando a mulher as viu, ficou grandemente admirada; seu marido, porém, disse-lhe: "Estás vendo, mulher? Eu não te disse?" - Os Marét haviam plantado a roça do homem.
Uma mulher com seu filho de uns seis anos foi ao mato. Não tinham coisa alguma para comer e queriam colher frutas. A mulher colheu frutas de caraguatá e empilhou-as para levá-las na volta.
Depois dirigiram-se a um outro lugar onde havia frutas de deyakitáig (cansanção). De repente, o menino disse: "Veja só, mãe!" No meio da mata estava um monte de bonitos jerimuns. Por ali, nem mesmo a grande distância, não havia roçados. "Quem teria trazido esses jerimuns para cá?", disse a mulher. "Vou já levar alguns deles para casa!" Encheu o ayó1 “e carregou o seu achado para o acampamento, onde contou como o tinha obtido. "Foram os Marét”, disseram os outros, "vamos também buscar jerimuns!" Assim fizeram todos, e comeram jerimuns com fartura. A princípio, tiveram um pouco de medo, receando que lhes podia fazer mal, mas nada lhes aconteceu.
Rignbrúk, filho de Entán, disse: "Pai, eu queria fumar! Não tens trato com os Marét? Pede-lhes fumo para mim! "De noite, Entán sentou-se e cantou. Pediu tabaco aos Marét e estes prometeram atendê-lo na manhã seguinte. Quando amanheceu, mandaram-lhe primeiro um cachimbo novo, vermelho, cheio de tabaco para provar. Rignbrúk acendeu-o e o achou excelente. Então os Marét trouxeram um pacote inteiro de tabaco, para que Entán o distribuísse pela sua gente. Era um fumo de qualidade superior, e a gente lhe pediu para ver uma folha dessa espécie, para eles desconhecida. Então Entán foi buscar uma entre os Marét; era do tamanho de uma folha de bananeira. Depois de todos a terem admirado, ele a levou outra vez aos Marét.  Em toda a região não havia tabaco.

A força mágica

Os Botocudos traduzem Yikégn pela palavra portuguesa "forte". Subentende-se "forte sobrenaturalmente", porque a força física, em língua de Botocudos, é nyipmro. Todos os chefes dos Botocudos eram yikégn, mas nem todos os yikégn foram chefes. Hanát contou-me como o chefe Biyán se tornou yikégn:

Biyán, tomando suas armas, foi sozinho ao mato caçar. A essa época, ainda não possuía força mágica. Na mata, encontrou um grande número de Marét. Estes o pegaram e o atiraram ao ar, aparando-o nas palmas das mãos, e assim o transformaram numa espécie de peteca durante algum tempo. Finalmente, um dos Marét achou que já chegava, porque Biyán já tinha recebido bastante força mágica. Ele se recolheu à casa, completamente estonteado, e se deitou; depois cantou. Feito isto, foi ao mato, e os Marét lhe trouxeram alguns ananases muito grandes que ele distribuiu pela sua gente.
Mais tarde os Marét levaram Biyán até a sua casa grande no céu.

Transformações

Afora esta faculdade de tratar com os Marét, possuem os yikégn ainda uma outra: podem operar em si mesmos ou nos outros repentinas transformações.

Um homem foi ao mato caçar. Matou uma guariba mas esta ficou pendurada, muito alto, nos galhos de uma árvore. Chegando em casa, ele contou ao filho que tinha deixado o macaco no mato. Então o filho pediu-lhe licença para acompanhá-lo ao mato, a fim de buscar o referido animal. Quando o menino avistou o macaco no galho da árvore, insistiu com seu pai que trepasse e o atirasse para baixo; este, porém, respondeu que a árvore era grossa demais. Mas o filho não cessou de importuná-lo, até que ele, finalmente, subiu. Quando chegou onde estava o animal, cortou-o em pedacinhos e deixou-os cair um a um. O filho gritou, para cima, que atirasse o animal inteiro, mas o pai não o atendeu. De repente o tronco da árvore inchou e os galhos estremeceram: o homem transformou-se num gavião real, suas flechas, em garras, e soltando um assobio, voou. O filho juntou os pedacinhos de carne e levou-os para casa.
As almas

Cada pessoa adulta tem um número de almas (nakandyún), algumas até cinco e seis, mas só uma delas habita no corpo; as outras ficam ao redor dele. Em sonhos o nakandyún abandona o corpo e tem as suas aventuras independente dele. A perda do nakandyún causa doenças.

Hanát foi ao mato caçar. Encontrou dois mbrukík (macacos sauá) que matou e levou. Quando ele chegou a casa, caiu sem sentidos. Um bando de macacos sauá chegou em forma de moças e quis levá-lo, mas ele se recusou a acompanhá-las. De repente, ouviu o assobio agudo dos Marét, e logo as macacas o abandonaram. Ficou, porém, doente, porque elas tinham levado o seu nakandyún. Elas ainda voltaram em forma humana para atormentá-lo. Finalmente apareceram três Marét à porta da casa e afugentaram as macacas, levando Hanát consigo para o seu país, no céu, onde lhe devolveram o nakandyún.  Eles lhe deram também uma bebida e ele ficou bom.

Os fantasmas

Dos ossos do cadáver forma-se o nandyón (fantasma), a saber: o nandyón yuka-krinã dos ossos frescos, depois de putrefata a carne, e o nimhiãmíe, reconhecível pelos seus cabelos compridos e que caminha aos saltos, dos ossos velhos. Outras formas de nandyón Raulino qualificou de nandyón-ron (- n. comprido) e nandyón-him (- n. preto).
A habitação dos nandyón chama-se Kiyém parádn e está sob a terra, sendo iluminada pelo sol quando aqui é noite. Ali os nandyón passam uma vida mais ou menos como os vivos aqui. Os Marét não permitem que voltem permanentemente à superfície da terra, enxotando-os assim que eles se apresentam. Apesar disto, acontece as vezes que aparecem aos vivos. Se o vivo não avançar corajosamente contra o fantasma, matando-o ou lhe dando, pelo menos, uma boa surra, pode morrer em conseqüência do encontro. Por isso, as mulheres receiam particularmente semelhantes aparições. Entretanto, no conto seguinte o encontro não teve más conseqüências para uma mulher.

Uma mulher disse a seu marido: "Fica aqui, ouço chamarem-me para a mata!" Quando a mulher seguiu no rumo do chamado, encontrou os nandyón na mata. Eles a pintaram com tinta preta.  Quando voltou, ela disse ao marido: "Isto é o meu vestido que os nandyón me deram!" Essa pintura podia ser vestida ou despida como roupa.
Um grupo de índios teve na mata um encontro com os caçadores de uma tribo inimiga. Lutaram com os inimigos, matando um deles. Algum tempo depois, um homem do mesmo bando foi caçar. Avisara a sua mulher que demoraria três ou quatro dias e lhe recomendou que, durante esse tempo, ficasse com sua mãe. O homem se encontrou na mata, outra vez, com aqueles inimigos e estes o mataram.
Decorridos os quatro dias, resolveu a mulher voltar a dormir na sua choça, para esperar aí a chegada do marido. Na escuridão da noite, chegou o nandyón do morto e entrou na choça.  Deitou-se e disse à mulher: "Vem catar-me!" A mulher atiçou o fogo e deitou a cabeça do nandyón no seu regaço. Então viu que a cabeça fervilhava de vermes e que aquele que tinha vindo era o nandyón de seu marido. Ela caiu morta instantaneamente, enquanto o nandyón desapareceu.
Havia um homem de nome Entán, que disse à sua mulher: "Vamos ao mato buscar mel!" Ela respondeu: "Vai só!" Ele tomou o machado e seguiu. Procurou durante muito tempo até que achou uma colmeia no pé de uma árvore. Começou a abri-la, quando ouviu um chamado.  Pensando que fosse sua mulher que o estivesse seguindo, respondeu. Espantou as abelhas que lhe rodeavam os ouvidos e escutou, quando viu que quem se aproximava era um nandyón.  Entán ficou aborrecido: "Que quererá ele aqui justamente agora?" Cortou um pau e com ele surrou o nandyón.  "Para não te intrometeres outra vez quando eu estiver tirando mel!", disse-lhe. Levou o mel para casa e contou que tinha dado uma surra em um nandyón. Depois começou a cantar como uma guariba. Sua gente espantou-se com isso mas ele explicou: "Os Marét assim o mandaram!" Depois foi ao mato encontrar os Marét e trouxe comida que todos comeram.
O mesmo Entán foi uma vez, em companhia de muitos outros, caçar na mata. Fizeram um acampamento e dormiram numa carreira comprida no chão, cada um com uma fogueira aos pés.  Entán estava deitado entre os outros. Ele vigiava enquanto os outros dormiam. De repente, percebeu que alguém estava se aproximando. Falou mas não teve resposta. Era um nandyón.  Este chegou à fogueira, tirou um tição e voltou com ele para o mato. Entán nada disse, mas resolveu matar o nandyón, caso ele voltasse na noite seguinte. Cortou um cacete, colocou-o ao seu lado e ficou acordado. Quando os outros adormeceram, o nandyón veio outra vez buscar fogo. Enquanto se abaixava para apanhar o tição, Entán derrubou-o com o cacete, matando-o.
Quando no mundo subterrâneo o fogo dos nandyón se apaga, eles vêm buscar um tição do fogo dos vivos.

Sol, lua, eclipses, noite

O sol é do sexo masculino.  A lua grande (não a lua crescente!) é masculina (munyák yekán - pai Lua), a pequena, feminina (munyák yopúe - mãe Lua).
Os eclipses produzem-se quando sol e lua brigam e se insultam. Ficam, então, escuros de raiva e de vergonha.
Em tempos remotos, não havia noite. Um homem desceu do céu e disse aos índios: "Se quiserdes, podeis matar-me!" Eles mataram-no, e ficou noite. Depois de algum tempo, tornou a viver, e fez-se novamente dia. Ele subiu ao céu de onde viera, e é hoje o sol.
A origem da trovoada

Tarú (- céu; não e idêntico nem ao sol nem ao deus celeste, Yekan kren-yirúgn!) tinha mulher e filha. Esta era casada com um homem de nome Ngan-nhin. Naquele tempo moravam na terra.  Tarú possuía um couro de lontra chamado krin-pakyúe que era o dono do segredo do mundo superior. Quando Tarú queria colher sapucaias, levava o couro de lontra e o pendurava. Seu genro quis ir colher sapucaias também, e pediu que o deixassem levar o couro. Tarú, com relutância, consentiu, mas lhe recomendou que limpasse bem o mato em torno do lugar em que o fosse pendurar. Ngan-nhin foi a um pé de sapucaia e pendurou o couro, mas só limpou ligeiramente a mata ao redor. Subiu na árvore e começou a derrubar as frutas, que caíram, pã-pã, no solo da mata. Então o couro de lontra começou a se mover e a esbravejar ao redor do tronco em que estava pendurado, e a bater contra as árvores, trovejando e estalando. Uma grande tempestade se levantou e, do chão, ao pé da árvore, rebentou a água. Esta subia rapidamente, mas Ngan-nhin não se importava. Continuou a jogar sapucaias para baixo e estas caíam, tu-tu, dentro d'água. De repente, ele viu que a água já estava prestes a chegar ao lugar em que estava sentado. Então começou a chorar e a gritar. A enchente suspendeu-o, junto com o couro da lontra, ao céu. Afinal, os Marét compadeceram-se dele e o deixaram entrar no céu.  Lá está o couro de lontra até hoje. Quando se move no céu, ouve-se o trovão e a água do céu transbordar e, então, chove na terra.
Antes disto não havia trovoada. O céu era tão perto da terra que, desta, se podia passar a ele sem susto; mas separaram-se.
A água

A cobra grande Nyukuádn é a dona da água. Causa as enchentes e dá à chuva o sinal para cair pelo arco-íris (nyukuán-imbyégn - urina de Nyukuán).
A princípio o único ser que possuía água na Terra era o beija-flor (holokeyún); todos os outros só bebiam mel. O beija-flor banhava-se todos os dias. Os outros também queriam ter água e encarregaram o mutum de seguir o beija-flor quando este fosse ao banho. O beija-flor, porém, era tão rápido que aquele logo o perdeu de vista.
De uma feita, todos estavam reunidos e fazendo fogo. Por último, chegou a irara, que se demorou porque estava tirando mel. Pediu com voz baixa: "Dá-me água!" "Aqui não há água!", responderam-lhe. A irara ofereceu mel ao beija-flor em troca de água, mas este não aceitou a proposta. Enquanto todos ainda estavam rodeando o fogo, o beija-flor disse: "Vou banhar-me!" e partiu. A irara seguiu-lhe no encalço e chegou quase ao mesmo tempo que o beija-flor à água, que se achava na concavidade de um rochedo. O beija-flor saltou n'água, e a irara, imediatamente atrás dele, espalhou a água em todas as direções, formando, assim, os rios e os córregos.
A aquisição do fogo

A princípio, só o urubu Ambéa possuía fogo. O mutum Pondyí deitou-se no meio do caminho e fingiu-se morto. As moscas varejeiras fizeram sua desova sobre ele que, depois, ficou cheio de vermes. O urubu desceu, trazendo fogo para assar o mutum. Este dizia baixinho aos vermes: "Não entreis em meus ouvidos, nem no meu nariz!" O filhote do urubu estava pousado junto e, vendo como o mutum movia os olhos, gritou: "Pai, ele não está morto! Está movendo os olhos!" "Não", respondeu o velho urubu, "ele está morto. Não o vês cheio de vermes? Espera um pouco, vamos comê-lo já!" Então o mutum agarrou, o tição de fogo do urubu, fugindo com ele. O urubu perseguiu-o. O mutum chegou onde estava o maguari² e pediu que este escondesse o fogo. O maguari atendeu-o, escondendo-o no seu ayó, sobre o qual sua mulher sentou-se, cumprindo o que lhe determinara o companheiro. O urubu procurou por toda parte e, como não achasse o fogo, retirou-se por fim. Então o maguari tirou-o e o espalhou para todos os lados, de maneira que hoje existe fogo em toda parte. Quando o urubu viu isto, renunciou de uma vez à posse do fogo, comendo desde então sua comida crua.

1- Saco de carga trançado em malha, usado por muitas tribos do Nordeste do Brasil.
2- Ave de rio, ciconiforme (Ardea cocoi L.)
Ilustração de viagem: Viagem ao Brasil do Príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied - Biblioteca Brasiliana da Robert Bosch GMBH. - Petrópolis: Kapa Editorial, 2001.

Fonte: Os Mitos / Curt Nimuendaju in  Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional .  nº 21 / 1986 - Fundação Nacional  Pró-Memória / Secretaria do Patrimônio e Artístico Nacional (SPHAN) Ministério da Cultura


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