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Tipos Regionais do Centro-Oeste
O Poaieiro
Gerada pela mineração do diamante, a partir de 1805, constituiu-se a povoação de Diamantino, à beira de tributários do alto Paraguai. Quando começou a  esmorecer, após o primeiro quartel de produtivas atividades, outra indústria extrativa atraiu os  egressos das lavras decadentes. Já não catariam as pedras cada vez mais esquivas, em meios dos cascalhos estéreis.

Mateiros que zanzavam à caça, ou em explorações pela selva portentosa, rio abaixo, descobriram pequena planta, que daria título à vestimenta vegetal dilatada pela encosta da serra dos Pareci, onde se adensa a Mata da Poaia. A primeira vista, nenhum indício a recomendava à apreciação dos devassadores de terras impérvias. Mas, ocultas no solo humoso, ou aparentes, as raízes presta dias continham substância medicinal.
Era a poaia, a respeito da qual corriam lendas  justificativas da sua utilização. Entrara no receituário médico, por maneira que lhe cresceu o  consumo, graças à opulência das matas litorâneas, onde se lhe intensificou a procura desordenada e final  destruição.

Martius ainda a observou nas imediações do Xipotó, por abril de 1818, conforme registrou em sua famosa Viagem pelo Brasil. "Provém de um arbusto baixo (Cephaelis ipecacuanha, Rich), que cresce geralmente na maior parte da serra do 
Mar, desde o Rio de Janeiro até ao Norte, na capitania da Bahia nas matas úmidas, em lugares sombrios e sempre em companhia".
O Poaieiro
O Poaieiro - Ilustração de Percy Lau
No tocante à colheita da raiz, apenas assinalou o insigne botânico bávaro: "é feita pelos índios e pelos negros escravos dos fazendeiros da vizinhança, durante o ano todo, porém especialmente rogo depois do tempo das chuvas". Nenhuma referência especial apontou para especificar o trabalhador afeito a operar nos poaiais. Porventura, não haveria denominação peculiar, que o individualizasse, diversamente do que sucedeu, mais tarde, em Mato Grosso.

Tamanha relevância logrou na economia regional a poaia, apesar das frequentes oscilações de preço nos mercados estrangeiros, que cedeu o nome à portentosa mata, onde viça às maravilhas, a oeste do rio Paraguai. Ainda mais, inspirou a formação de palavras derivadas e lendas indicativas da rudeza da tábua em ambiente sobremaneira úmido, onde o sol não penetra.

Os dois mais constantes colaboradores de sua expansão receberam o mesmo apelido - poaieiro.
Um, é o auri-negro passarinho, invisível às mais das vezes, considerado auxiliar de quem anda em busca da prestante rubiácea, e cujo pio os ouvintes interpretam como sinal de aproximação de sítios de concentração em reboleiras férteis. De mais a mais, alimenta-se com a sua baga esbranquiçada, propiciando maior propagação da espécie.
Outro, é o homem que freqüenta a mata, arrostando perigos incontáveis, entre os quais não serão menores os provenientes de minúsculos transmissores de morbos fatais.
Como o seringueiro, ao qual se assemelha por mais de um traço, atua em condições parecidas, à sombra da floresta onde medra a planta valiosa. Ali não há lugar para os pusilânimes, para os abúlícos, para os enfermiços. Ao deixar os seus labores habituais, na mineração, nas roças, nos seringais, nas lidas pastoris, seduzido pela miragem de maiores vantagens, o poaieiro arma-se de resistência e decisão para enfrentar os obstáculos de que lhe darão ciência os veteranos.
E quando de nenhum se aproxime, bastarão as historietas de boca em boca divulgadas, especialmente, nos povoados a oeste do rio Cuiabá, para lhe pintarem quadros trágicos na vida da Mata da Poaia.

Começam os preparativos ao longe, quando o organizador da comitiva alicia os companheiros de aventuras, a cuja família promete os fornecimentos de mantimentos durante a safra. Em cargueiros, frequentemente bois de sela, acomodam-se os gêneros alimentícios, drogas medicinais e demais artigos indispensáveis à manutenção do pessoal no seio da floresta, por cerca de seis meses, quando não seja fácil a renovação mensal.
Ultimada a peregrinação no local previamente escolhido, ou que se afigure promissor, os machadeiros encarregam-se de abrir a clareira, onde tombam árvores frondosas, enquanto outros ajeitam material para o abrigo temporário.

Simples, o rancho beira-chão, em duas águas, cobre-se de palmas de acuri, encontradiças nos arredores. Paus roliços e retilíneos servem de esteios, os mais grossos, de vigas, de caibros e ripas que o cipó enlaça, dispensando o emprego de peças metálicas. As vezes, antecede o leve alpendre, de construção mais rudimentar, de precária cortina de folhagem.
Dentro, em jiraus, depositam-se os gêneros de consumo coletivo: arroz, feijão, farinha, carne seca, latas de banha ou toucinho, açúcar ou rapadura, guaraná, café, ou mate, sal, aguardente e fumo.
Alimentos complementares serão fornecidos pela mata, em palmitos, mel, fruta e caça.
Para tanto, não dispensa o poaieiro a sua carabina Winchester 44, que maneja destramente.
Diariamente, porém, serve-se apenas da garrucha de dois canos, que prende à cinta, quando, após a refeição matinal, de feijoada, arroz sem sal, carne de porco, ou de veado, se houver, envereda pela picada, que assinala a golpes de facão.

Alimentado de tal maneira pela manhã, investe contra a mata escura, onde pressente que não deve jamais estar desatento. Os inimigos rondam-lhe os passos, à espera de qualquer momento propício ao assalto mortal.
Trajado singelamente, de camisa de riscado ou algodãozinho, com as fraldas libertas da calça de mescla, ambas arregaçadas e chapéu de carandá, mas descalço, ou apenas protegidos os pés em alpercatas, é bem o lutador resoluto diante da conjura dos elementos que lhe tentam contra a vida.
Os borrachudos, que lhe ponteiam a pele de rubro, os lambe-olhos, causadores de conjuntivites, os mosquitos brancos, astuciosos no varar os mosqueteiros, os transmissores de impaludismo e as mutucas sanguissedentas formam enxames agressivos, de atuação ininterrupta.

Mormente, na quadra chuvosa, de novembro a março, preferida para a safra, por se achar a terra empapada e fofa, própria a ser facilmente esgaravatada a pontaços de saracuá. De quando em quando, depara-se-lhe no trecho alguma preguiçosa cobra venenosa, cujo bote evita cautelosamente. Ou lobriga, por entre as folhas, as malhas fulvas da onça, de tocaia às vítimas de seu traiçoeiro assalto.
Nos primeiros tempos, acrescia ainda a hostilidade bravia dos "Barbados", indígenas arraigados naquelas paragens, cuja invasão vedavam a forasteiros que não lhes fossem do agrado. Atento aos sons que lhe cheguem, às onças e aos movimentos suspeitos das ramagens, põe-se em guarda o poaieiro a cada momento. Com o facão, abre o caminho e, ao descobrir a planta procurada, vale-se do saracuá, semelhante a ponteiro de aço, acabado em guatambu, ou madeira de análoga resistência, para afofar a terra, onde se ocultam as raízes aneladas da ipeca. E, à medida que as vai colhendo, ora com facilidade nas associações condensadas dos "fogões" fartos, ora catando as unidades dispersas, recolhe-as ao bornal ou bolsa de lona, pendurada a tiracolo por macia tira de sola.
E ao entardecer apressa-se em tornar ao ponto central da "feitoria", caso não o desnorteie o "Pé de Garrafa", duende capaz de acometer os mais destemidos mateiros. Ninguém que o veja regressará assisado ao convívio dos amigos. Todavia, descrevem-no como unipedal monstrengo de aparência humana, que deixa rastro semelhante ao molde de fundo de garrafa. Só se mostra aos predestinados a trágico fim. Verificar-lhe as medonhas feições, não será permitido a quem evite perder o rumo do costumeiro abrigo. Ainda que o lendário inimigo não consiga estreitá-lo de encontro ao seu peito cabeludo, para lhe sugar vorazmente os olhos e deixá-lo estendido, para pasto de famintos carniceiros, o poaieiro a quem apareça, não mais acertará o caminho do rancho. Só os sezonáticos, no paroxismo dos acessos febris, conseguem vê-lo impunemente, quando a realidade se lhes depara fantasticamente colorida pelo delírio.

Assim vive o poaieiro, fora de sua querência, durante meses de trabalho e aflições, com a leve esperança de amealhar haveres que lhe garantam o bem--estar da família ou o seu próprio. Raramente, porém, sorrir-lhe-á a prosperidade, que de preferência irá beneficiar os intermediários. Todavia, do anônimo heroísmo do obreiro abnegado, mantido na calada misteriosa da mata, que lhe abafa os episódios mais dramáticos da luta porfiada, resulta a colheita da raiz insubstituível.
E assim, dos sofrimentos sobre-humanos a que se acha de contínuo exposto o poaieiro, provém a matéria-prima, que tratada nos laboratórios de nomeada universal, irá fornecer a emetina, para alívio e cura de milhões de doentes espalhados pelo mundo inteiro. 


Fonte: O Poaieiro / Virgílio Correa Filho in Tipos e Aspectos do Brasil. - Departamento de Documentação e Divulgação Geográfica e Cartográfica / Instituto Brasileiro de Geografia / Fundação IBGE. - Rio de Janeiro, 1970


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